quarta-feira, 26 de maio de 2010

Licença Ambiental

A Lei de Bases de 1987 (doravante LBA) já previa a licença ambiental, mas só com o Decreto-Lei n.º 194/2000 foi desenvolvido este instrumento jurídico-administrativo. O artigo 33º da LBA previa já um licenciamento de actividades poluidoras autónomo em relação aos licenciamentos de actividades industriais e de construção. O objectivo não era autorizar a actividade mas emitir uma licença de conformidade ambiental da mesma. As orientações da LBA viriam a ser concretizadas pelo Decreto-Lei já referido, que transpôs a Directiva Comunitária de 1996. Hoje, o regime do licenciamento ambiental consta do Decreto-Lei 173/2008.
O procedimento previsto em 2000 era complexo quer em termos subjectivos, quer em termos objectivos. Ao nível subjectivo, existiam diversas entidades intervenientes: a entidade coordenadora do licenciamento, a autoridade competente para a licença e as DRA. Ao nível objectivo, tínhamos um procedimento administrativo faseado com muitas etapas e com obrigação de publicidade nalguns momentos. Em 2008, um dos principais objectivos do Decreto-Lei 178/2008 foi a aceleração procedimental e a simplificação legislativa e administrativa para ganhar eficiência. Por isso, concentrou-se numa única entidade a coordenação do processo de licenciamento, onde se inclui a autorização de actividade e licença de instalação, exploração e alteração. A licença é agora parte integrante do pedido de autorização da instalação, sendo este apresentado à entidade coordenadora (doravante, EC) que o envia à Agência Portuguesa de Ambiente (doravante, APA). A esta entidade cabe a instrução do pedido (13º), prosseguindo depois o procedimento com a avaliação técnica, procurando assegurar um nível elevado de protecção do ambiente.
Outros aspectos relevantes a salientar são a obrigação de divulgação de todos os pedidos de licença (15º) e as consequências do princípio da cooperação internacional: impõe-se a consulta ao Estado membro da União Europeia sempre que a instalação possa causar efeitos nocivos e significativos no ambiente desse Estado. Realcem-se também as regras de exclusão da aplicação do regime (4º). O fundamento substantivo é a não utilização da capacidade de produção diária mas, mesmo neste caso, há sempre controlo dos interesses ambientais. A EC deve verificar a situação de exclusão e a APA deve pronunciar-se de modo vinculado. Impõem-se também monitorizações como a verificação anual mediante vistoria e prevê-se expressamente a revogação da exclusão, o que favorece o princípio da prevenção e da precaução.
A criação da licença ambiental, para além de todas as licenças necessárias para o funcionamento de actividades potencialmente poluidoras, pode trazer aumento da burocracia e demora dos procedimentos autorizativos das instalações. No caso de instalações sujeitas a Avaliação de Impacte Ambiental, a licença só será emitida após a Declaração de Impacte Ambiental. Mas a abordagem integrada dos problemas ambientais tem grandes vantagens porque faz uma análise concertada e global dos efeitos das actividades em relação a todos os componentes ambientais naturais. Isto permite uma economia de tempo e meios e uma conjugação dos efeitos nocivos de todos os elementos nefastos envolvidos. Assim sendo, temos economia procedimental no conteúdo dos pedidos de licenciamento em cumprimento do princípio constitucional orientador da actividade administrativa da eficiência (267º/2 e 4 CRP). Saliente-se, porém, que não se logrou a concentração total de licenças, pois a licença de resíduos (24º DL 173/2008) e os títulos de utilização de recursos hídricos (26º) continuam em anexo à licença ambiental.
Uma das questões que se levanta em torno da licença ambiental consiste na sua natureza jurídica. Para José Figueiredo Dias, no seguimento de Rogério Soares, e para Vasco Pereira da Silva trata-se de um acto administrativo enquanto decisão de realização do interesse público de efeitos jurídicos numa situação individual e concreta. O legislador definiu, como é já seu hábito, a licença no artigo 2º/1 i) do DL, mas não a caracterizou juridicamente. Olhando para esta definição, pode concluir-se que é um acto administrativo, pois trata-se de uma decisão escrita, mas não fica esclarecido se é um acto administrativo autorizativo constitutivo de direitos ou permissivo do exercício de direitos já existentes.
A doutrina diverge na resposta a esta questão, mas todos parecem convergir no sentido de estarmos perante um acto administrativo que concede vantagens ao particular. Também não se questiona que o particular tem o direito a desenvolver actividades económicas, mas já se discute até que ponto este direito inclui os interesses ambientais cujo exercício está sujeito a autorização e que são tutelados pela licença. O particular tem liberdade de actuação para a prossecução de actividades privadas dentro de certos limites, com ponderação da conciliação de interesses públicos e privados. Por isso, na opinião de Vasco Pereira da Silva, a licença é um acto criador de direitos. A actividade lesiva do ambiente, enquanto interesse público, vai ser controlada por um programa que consta do acto autorizativo com todas as medidas necessárias ao cumprimento das condições de protecção do ar, água e solo e à prevenção ou redução da poluição sonora e da produção de resíduos. Para Raquel Carvalho, não se pode entender a licença como acto constitutivo de direitos mas apenas como acto permissivo porque no seu regime jurídico está prevista a caducidade como fenómeno extintivo de um direito.
A licença é concedida pela Agência Portuguesa do Ambiente (9º/1) às instalações que desenvolvam qualquer das actividades identificadas no Anexo I (3º/1 e 2º/h)), excepto as que se dediquem exclusivamente à investigação, desenvolvimento ou experimentação de novos produtos (3º/2). As alterações substanciais da instalação também estão sujeitas a licenciamento ambiental (10º/2 e 2º b)), tal como a renovação da licença por verificação do termo (18º/2 g) e 20º/1 e 2).
Com a revisão da RLA, a licença ambiental passou a ser elemento integrante da licença de exploração da instalação (9º/3). Assim, a exploração de instalação depende do deferimento do pedido de licença ambiental, sendo inválida se este for indeferido ou não existir (9º/4). A licença de exploração, por outro lado, é condição de eficácia da licença ambiental, já que os efeitos de facto da sua emissão só se activam com o início de funcionamento da instalação. Por esta razão, o prazo de validade referido no 18º/2 g) só deve começar a correr a partir da data de início da exploração da instalação. Para além disso, qualquer alteração superveniente da licença ambiental deve reflectir-se no conteúdo da licença de exploração, sob pena de invalidade superveniente desta (9º/1 e 4 e 20º/3 por analogia). Também o prazo de impugnação de uma licença ambiental por pessoas diferentes do titular deve começar a contar no início da exploração.
A APA tem bastante margem de manobra para agravar ou desagravar deveres de protecção do ambiente do operador, bem como para indeferir o pedido de licença ambiental. A APA pode impor condições mais restritivas para salvaguardar a qualidade ambiental (18º/3 e 5) e está também habilitada a flexibilizar as exigências que o licenciamento em concreto requereria em nome de razões de ordem sócio-económica, desde que opte por técnicas equivalentes (18º/4). Acresce a isto a grande discricionariedade que lhe é atribuída no 16º/6 f) relativo ao indeferimento pois, ao usar-se a expressão “relevo suficiente”, está a deixar-se à APA uma ampla margem de livre apreciação das desconformidades que o pedido de licença pode revelar em face de leis ou regulamentos aplicáveis, praticamente insindicável por significar valorações próprias da função administrativa (cf. 71º/2 CPTA). A suposta enumeração taxativa dos fundamentos de indeferimento fica totalmente esvaziada com esta alínea.
O actual regime optou pela valoração do silêncio da APA como deferimento do pedido de licença. Esta solução é potencialmente lesiva dos valores da prevenção de riscos para a saúde e para o ambiente que o regime do RLA pretende acautelar. O legislador procurou atenuar os efeitos perversos desta solução proibindo a formação de decisão silente favorável quando se verifique alguma das razões de indeferimento do 16º/6. Assim, temos, na opinião de Carla Amado Gomes, para além de um deferimento tácito, um indeferimento implícito.
A lei dispensa a APA de proferir decisão expressa mas impõe-lhe o dever de emitir certidão comprovativa do deferimento (17º/2) e de devolver ao operador a taxa de apreciação do pedido (30º/4). Sem esta certidão, o operador não pode obter a licença de exploração (9º/2). Para ultrapassar possíveis paralisias decorrentes da ausência de emissão da certidão prevê-se a intimação para passagem de certidão, processo sumário regulado nos artigos 104º e seguintes do CPTA (ex vi 22º/2 RLA). Porém, não refere uma via de certificação do indeferimento implícito no caso da verificação de alguma das condições do 16º/6.
O artigo 20º/3 consagra a revisão da licença por superveniência de factores físicos ou técnicos que importem uma necessidade de adaptação do conteúdo daquela a uma nova realidade fáctica. A licença constitui um acto prévio por ser condição de emissão da licença de exploração, mas também é um acto precário devido ao termo final a que está sujeita (18º/2 g)). Para além disso, também é precária no sentido em que o 20º/3 prevê uma eventual antecipação do termo final devido à superveniência de novas circunstâncias. A sujeição a revisão é um risco para qualquer operador das actividades abrangidas por este regime e estas devem ser objecto de acompanhamento contínuo por parte da Administração e do operador (através de monitorização a submeter à APA – 28º e 29º), já que acarretam um desgaste intenso do meio ambiente. Concluímos então que o risco de alteração da licença corre por conta do operador, sem que a Administração tenha de o indemnizar por qualquer dano emergente do custo adicional com novas técnicas. No entanto, devemos ressalvar alguns casos de revisão intensa e antecipada da licença que se traduza na incapacidade de suportar os custos de inovação e na impossibilidade de amortizar os custos de instalação (veja-se o 20º/3 b) que afirma que a alteração das melhores técnicas disponíveis deve ser feita sem impor custos excessivos). Nestas hipóteses, pode ponderar-se a concessão de uma indemnização por facto lícito se a Administração revogar a licença ou de uma indemnização de imprevisão para ajudar a suportar os custos da transição.
Uma palavra ainda para alguns aspectos jurídicos da fiscalização do cumprimento das disposições legais. Falamos do regime jurídico das contra-ordenações, estreitamente relacionado com o princípio do poluidor pagador e com o princípio da responsabilização. O regime das contra-ordenações da disciplina legal da licença ambiental remete para a Lei n.º 50/2006, o que significa que, nas contra-ordenações graves e muito graves, a tentativa é punível. Constitui uma contra-ordenação muito grave a exploração ou alteração substancial da actividade sem a licença ambiental, e estão previstas quatro contra-ordenações graves relacionadas com o incumprimento de obrigações na sequência da licença emitida. As contra-ordenações leves prendem-se a obrigações associadas à informação e à obrigação de pedir renovação em tempo.

Conclusão
O conhecimento dos efeitos que produzem determinadas actividades humanas traz a possibilidade de prevenir melhor os danos dos mesmos e estudar meios para reparar os que forem evitáveis. É isto que permite a licença ambiental, um dos instrumentos jurídicos mais relevantes e centrais no Direito do Ambiente. O procedimento administrativo de uma instalação tornou-se mais complexo, porém não foi no sentido de dificultar o acto final de licenciamento, mas no sentido de conjugar a ponderação de todos os interesses que podem estar em causa. Há mais intervenientes no procedimento e mais actos administrativos praticados, mas nem por isso a decisão será mais demorada.
Ana Gouveia Martins lamenta que na regulamentação da licença ambiental não exista uma referência expressa ao princípio da precaução e critica a orientação da lei, que está mais traçada para a prevenção da poluição do que para os riscos ambientais. Porém, ainda que não esteja expressamente previsto, o primeiro fundamento da criação da licença ambiental foi reforçar o princípio da prevenção e da precaução, pois não só se exige um acto administrativo autorizativo, mas também se concentra o princípio da eficiência e do nível mais adequado de acção. O princípio da prevenção sustenta e funda este instrumento jurídico e, ao mesmo tempo, procura-se também mais eficiência e celeridade decisória.
O regime não está imune a críticas, especialmente no que respeita à opção quanto ao silêncio e ao seu valor jurídico. A eficiência e a simplificação dos procedimentos decisórios da Administração Pública não justificam tudo em sacrifício de relevantes interesses públicos, pois têm valor instrumental. Cabe ao Estado, de acordo com o artigo 66º/2 a) da Constituição da República Portuguesa, assegurar o direito ao ambiente, prevenindo e controlando a poluição e os seus efeitos. A licença ambiental é um instrumento privilegiado para isso, mas a valoração do silêncio como deferimento tácito parece realmente violar o princípio constitucional da prevenção e as obrigações decorrentes dos tratados institutivos da UE e das directivas comunitárias sobre esta matéria, sendo também contrário aos objectivos da própria licença ambiental.


Bibliografia
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- GOMES, Carla Amado, O Licenciamento Ambiental – Panorâmica geral e detecção de alguns nódulos problemáticos decorrentes da articulação necessária com outros procedimentos autorizativos, in Textos dispersos de direito do ambiente e matérias relacionadas, Lisboa, AAFDL, 2008;
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