sexta-feira, 21 de maio de 2010

ONDE JULGAR O AMBIENTE?

Caros colegas, a tendência para nos focarmos mais sobre as questões de direito material é compreensível, uma vez que ainda não ingressámos na vida profissional. Porém, como salientam alguns autores, a questão, de natureza adjectiva, de saber em que domínio de jurisdição integrar um determinado litígio ambiental é fundamental, pois, como já sabemos, as questões formais são a primeira coisa que o tribunal deve conhecer. Este textinho incide, precisamente, e ainda que modestamente, sobre esta temática.
Como salienta a professora CARLA AMADO GOMES, quando o legislador do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante, ETAF) concebeu as várias alíneas atributivas de competência jurisdicional, a partir da noção de relação jurídica administrativa, não perdeu a referência do indirizzo constitucional (artigo 212º/3 CRP) de concretização mínima do conceito. A noção de relação jurídica administrativa, essencial para a justificação da existência de uma jurisdição especializada, tem de ser pressuposto na leitura das alíneas do artigo 4º/1 do ETAF, sob pena de atentar contra a delimitação constitucional e contra as razões, históricas e práticas, da criação de uma jurisdição administrativa. Pode-se dizer, assim, que cada alínea é uma espécie de proposição jurídica incompleta, completada justamente pela marca jurídica da relação administrativa, de gestão da coisa pública, ou seja, relacionada com a função administrativa.
Sendo assim, pode-se dizer que existe um “ambiente” próprio para o julgamento dos litígios por parte dos tribunais administrativos. Certamente que existem zonas proibidas (quando não haja qualquer ligação à função administrativa), mas, e entendendo que se trata aqui de reserva absoluta de jurisdição, há que entregar à jurisdição administrativa o que é inquestionavelmente seu. Em conclusão, a primeira coisa a fazer, quando se analisa o caso que gera polémica, e que é entregue ao bom senso jurídico do intérprete-aplicador, é averiguar da existência do prosseguimento dessa finalidade administrativa. Se a mesma existir, intenta-se a acção nos tribunais administrativos; se não, então faça-se desenvolver a mesma na jurisdição comum.
As alíneas do artigo 4º do ETAF que procedem em abstracto à inserção dos litígios ambientais são a b) e a l). Na primeira, que se refere nomeadamente aos actos administrativos, podem-se integrar situações que estão a coberto de efectivos actos administrativos (como é óbvio) no contexto ambiental, quer sejam inválidos ab initio, quer a título superveniente. Mas também se devem integrar aqui, ao contrário do que sustenta a mencionada Autora, os actos administrativos omitidos, ilegalmente. Ou seja, quando haja omissão de um acto de autorização neste domínio ambiental, aí também é evidente que será a jurisdição administrativa a competente. Na segunda alínea (l), por seu turno, enquadram-se, em termos meramente literais, os litígios em que as entidades públicas violam valores e bens ambientais, constitucionalmente protegidos (através de outras actuações/omissões, que não constituam puros actos administrativos). Ou seja, esta alínea é certamente um alargamento do âmbito conferido pela alínea b. Mas cumpre ainda suscitar uma questão: será que a alínea l deve ser reduzida a uma análise literal, ou dever-se-á antes alargar o âmbito atributivo da norma, no sentido de a aplicar também aos casos em que se pede a prevenção, cessação e reparação da violação levada a cabo pela actividade lesiva de bens ambientais naturais, da autoria de privados que não exerçam funções materialmente administrativas? A resposta, na minha perspectiva, é afirmativa. É que, se é verdade que não há exercício da função administrativa no que toca à actividade particular, o facto é que o particular está a lesar um bem jurídico colectivo e, por essa razão, recai sempre sobre a Administração, em termos abstractos, um dever de zelo pelo ambiente, que é imposto constitucionalmente, pelo já referido preceito constitucional. A professora CARLA AMADO GOMES afirma que nesta alínea não estão abrangidas as violações levadas a cabo por particulares a descoberto de qualquer autorização administrativa, legalmente exigível ou não. Ora, para além de considerar que o caso de omissão de autorização administrativa (evidentemente, por ser legalmente exigível) se insere na alínea b, julgo que o que é verdadeiramente relevante é, não a autorização administrativa, mas a susceptibilidade de uma qualquer actuação administrativa, independentemente da sua forma (ainda que, reconheça-se, na maior parte dos casos, se achem intimamente relacionadas) no pedaço de vida que constitui o litígio.
No entanto, e não olvidando que a riqueza do Direito se manifesta no caso concreto (real), quando seja duvidosa a integração, penso que, de acordo com o princípio da celeridade e efectividade da tutela jurisdicional (artigo 268º/4 CRP) e até da melhor administração da justiça, há que atribuir competência à jurisdição administrativa. E porquê? É que, se existe dúvida, então é porque existe uma qualquer “sombra” de actuação da Administração, a qual justifica a recondução dos litígios à jurisdição administrativa.
Em relação à legitimidade, deve-se dizer que a mesma é conferida a quem tenha um interesse directo ou a título de legitimidade popular. No entender da professora CARLA AMADO GOMES, o direito ao ambiente não é um direito subjectivo em si mesmo. O que a Constituição faz, ao consagrar o direito fundamental ao ambiente (66º CRP), é impor ao Estado várias obrigações, quer de cariz positivo, quer de cariz negativo, relativas a proteger a integridade dos bens ambientais. Já o professor VASCO PEREIRA DA SILVA adopta uma posição essencialmente subjectivista, considerando que é possível haver um direito subjectivo ao ambiente. Julgo que a razão está com a professora. Vejam-se os motivos. O particular está inserido, como decorre do princípio da dignidade da pessoa humana, numa esfera de protecção, qual bolha de imunidade. Tem um conjunto vasto de direitos, dos quais se destacam os direitos fundamentais. Às várias parcelas que constituem a protecção é atribuída uma designação específica, construindo-se então um complexo de direitos, como vida, integridade física, liberdade e propriedade. O ambiente, embora erigido a direito fundamental, não é, do meu ponto de vista, uma dessas parcelas. É, isso sim, uma via indirecta de proteger e efectivar os outros direitos (assumo, por isso, uma visão marcadamente antropocêntrica sobre a protecção jurídica do ambiente). Por estas razões, julgo que o particular não pode recorrer a este “direito” a título principal, com ele sustentando uma legitimidade individualizada. Exemplificando. Suponha-se que existe uma instalação industrial num terreno contíguo à minha plantação de árvores, que é a base económica da minha subsistência. Se os danos que a fábrica produzir se cingirem à minha esfera particular, então, na minha perspectiva, não será aqui de invocar, para fundamentar o pedido de reparação, o suposto direito ao ambiente. O que será de utilizar é, eventualmente, a propriedade privada (e a jurisdição será a comum). Já no caso de a fábrica afectar, com o seu funcionamento, uma zona mais abrangente, ou um bem ambiental específico da comunidade, então aí já será de dizer que o particular violou o dever de protecção do ambiente, sendo permitido ao actor popular pedir a condenação à adopção de comportamentos tendentes a diminuir essa afectação, na jurisdição administrativa (e fiscal).

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