domingo, 25 de abril de 2010

O direito à informação – análise do acórdão do TEDH - Anna Maria Guerra vs Itália 1998

Decidi abordar este tema numa óptica mais prática, via apreciação crítica de um “hot case” do TEDH onde o direito à informação não foi respeitado e que, por esse facto, originou graves danos pessoais aos queixosos.

Neste caso, o Tribunal deteve-se sobre a existência de um dever de informação do Estado relativamente a riscos sanitários decorrentes de emissões gasosas, mais especificamente trióxido arsénico proveniente de uma fábrica de químicos destinados à agricultura situada em Manfredonia, Itália.

O trióxido arsénico é um gás altamente tóxico, cujos componentes são perigosos, principalmente devido aos seus efeitos na pele. É, na legislação portuguesa, considerado uma substância perigosa - Decreto-lei nº 164/2001 (anexo I).

No caso, os autores, um conjunto de residentes nas imediações da fábrica, recorreram à Corte de Estrasburgo depois de terem tentado obter informações, junto das autoridades e também dos tribunais nacionais, sobre os componentes emitidos pela instalação cuja disseminação já provocara, na sequência de um acidente ocorrido em 1976, a hospitalização de mais de uma centena de pessoas por envenenamento.

A fábrica em questão – a “Enichem agricoltura” – cuja produção se resume a fertilisantes e outros produtos químicos utilizados na actividade agrícola, foi classificada, em 1988, como de “alto risco” (“high risk”), de acordo com os critérios do Decreto Presidencial nº 175 de 18 de Maio de 1988 (“DPR 175/88”), a qual foi transposta para o ordenamento jurídico italiano através da Directiva 82/501/EEC do CEE que ficou conhecida como a “Directiva Seveso”.

O objectivo da Directiva Seveso é Prevenção de perigos de acidentes graves que envolvam substâncias perigosas e a limitação das suas consequências para o Homem e para o Ambiente, cujo âmbito de aplicação são Estabelecimentos onde estejam presentes substâncias perigosas acima de determinados limiares, como era o caso da fábrica de químicos italiana.

Os autores alegaram que a fábrica, no âmbito da sua actividade produtiva, soltavam grandes quantidades de gases inflamáveis – um processo que poderia ter resultado em reacções químicas explosivas devido às substâncias altamente tóxicas que eram largadas na atmosfera – nomeadamente dióxido sulfúrico, óxido nítrico, trióxido arsénico, entre outros.
Devido ao mal funcionamento da fábrica já tinham ocorrido vários acidentes, tendo sido o mais grave a explosão de Setembro de 1976.

De acordo com um relatório de Dezembro de 1988, elaborado por uma comissão de peritos nomeados pelo Conselho Distrital de Manfredonia, estabeleceu-se que, devido à posição geográfica da fábrica, as emissões de gases provenientes da fábrica seriam canalizados para Manfredonia. Ficou registado nesse mesmo relatório não só que a fábrica tinha recusado a comissão a fazer uma inspecção, como também se provou, mediante estudos da própria fábrica, que o equipamento para emissão de gases era inadequado e que a avaliação de impacto ambiental estava incompleta.
Em 1989 a fábrica reduziu a produção de fertilizantes, mas ainda assim era classificada – de acordo com os critérios do DPR 175/88 – como perigosa. Em 1993, o Ministro do Ambiente em conjunto com o Ministro da Saúde tomaram medidas de promoção da segurança e higiene na produção de fertilizantes da fábrica.
Contudo, em 1994 a fábrica parou, permanentemente, a produção de fertilizantes, restando apenas uma estação termoeléctrica e uma estação de tratamento de águas residuais.

A disposição da Convenção alegadamente violada foi o artigo 10º.

Segundo a apreciação do TEDH não houve violação da alegada norma, uma vez que o que está em causa não é um direito à informação na sua vertente positiva de obrigar o Estado a fornecer informações, mas sim, numa vertente negativa, de garantir que o Estado não obsta nem dificulta o acesso a essa informação aos interessados. Contudo, o juiz Jambrek, em voto de vencido, defendeu a aplicação do artigo 10º ao caso, com base na consideração da sua dupla dimensão negativa/positiva :

“ I am therefore of the opinion that such positive obligation should be considered as dependent upon the following condition: that those who are potential victims of the industrial hazard have requested that specific information, evidence, tests, etc., be made public and be communicated to them by a specific government agency. If a government did not comply with such a request, and gave no good reasons for not complying, then such a failure should be considered equivalent to an act of interference by the government, proscribed by article 10 of the Convention.”

Esta posição, criticada como muito restritiva por Carla Amado Gomes é, na minha opinião, favorável aos cidadãos enquanto prejudicados pela falta de informação pois transfere o ónus da publicação e da divulgação às autoridades competentes e não à mera diligência do público que, na maioria das vezes, desconhece os factos técnicos ou os procedimentos adequados à recolha dessa informação. Contudo, atendendo-se à obrigação de publicitação exigida pela directiva Seveso e outros diplomas entende-se a crítica da autora à posição do juiz do TEDH.

Em suma, e no que concerne ao artigo 10º, o TEDH decidiu pela sua não aplicação, uma vez que o direito a receber informação, previsto no nº2 do artigo, "basically prohibits a government from restricting a person from receiving information that others wish or may be willing to impart to him".

Foi, contudo, acerca da alegada violação do artigo 8º da Convenção que o Tribunal mostrou parecer favorável aos autores. O artigo, de cariz quase elástico nas palavras de Carla Amado Gomes, visa defender o particular contra interferências no seu direito à reserva da vida privada.

No caso em apreço o Tribunal referiu o facto da população de Manfredonia viver aproximadamente a um kilómetro da fábrica que, devido à sua actividade de produção de fertilizantes, tinha sido considerada como de “alto-risco”. Assim sendo, e analisados já todos os factos descritos supra, o Tribunal considerou que o artigo 8º era aplicável por haver um efeito directo da emissão de gases tóxicos na vida privada dos autores. Afirma o Tribunal:

“ The Court reiterates that severe environmental pollution may affect individuals`well-being and prevent them from enjoying their homes in such as to affect their private and family life adversely. In the instant case, the applicants waited, right up until the production of fertilizers ceased in 1994, for essential information that would have enable them to assess the risks they and their families might run if they continued to live in Manfredonia, a town particularly exposed to danger in the event of an accident at the factory”.

O Tribunal entende, deste modo, que o alegado Estado não cumpriu a sua obrigação de assegurar o direito à vida privada dos particulares/autores, de acordo com o estipulado no artigo 8º.

Em suma, e afastando qualquer discussão acerca de uma possível indemnização dos danos pessoais causados pelas emissões de gases tóxicos pela fábrica aos residentes em Manfredonia, o que se discutiu neste acórdão não foi o problema do direito à informação ter sido violado ou não, mas sim o facto de ter havido interferências externas ao direito à reserva da vida privada dos residentes daquele local.
Parece-me, contudo, que havia violação do direito à informação, não só pela fábrica se ter recusado a colaborar com o comité de inspecção na recolha de informações, como também, e principalmente, por não ter havido publicitação nem divulgação de informação suficiente à população acerca dos riscos de saúde que corriam devido à produção de fertilizantes na fábrica. Contudo, trata-se de um caso passado em Itália.

Analisando o regime português, cabe referir, em primeiro lugar, o regime do direito à informação previsto na Lei nº 19/2006 de 12 de Junho e, também, a Directiva 96/82/CE (Seveso II) cuja aplicação no ordenamento jurídico português se reflecte nos seguintes diplomas:
- Decreto-Lei n.º 164/2001;
- Portaria n.º 193/2002 (códigos e modelos de relatórios de informação de acidentes graves);
- Portaria n.º 395/2002 (comparticipações a cobrar pelo IA);

No que concerne ao regime do acesso à informação sobre Ambiente cabe referir que este surge no artigo 268º/1 e 2 da CRP de 1976, numa dupla dimensão: subjectiva, na medida em que a informação e o acesso às suas fontes são essenciais para que o cidadão compreenda o fundamento e o limite dos seus direitos face ao poder público (nº1); objectiva, porquanto o controlo da transparência da decisão administrativa depende da possibilidade de os cidadãos se informarem e serem informados sobre o procedimento em causa (nº2). O acesso à informação está ligado à ideia de partilha de “poder” entre particulares e Administração. Afinal “informação é poder”.
O interesse na preservação e na protecção do ambiente exige, por parte do cidadão activo, uma consciência de comunidade e um envolvimento nas tomadas de decisões, nomeadamente através dos mecanismos de participação democrática, constitucionalmente consagrados. Estes mecanismos de participação exigem, porém, que o cidadão conheça os dados da situação (direito à informação), que possa exprimir a sua opinião (direito a ser ouvido), que a sua opinião seja tida em consideração pelo órgão decisor e que tenha acesso ao teor da decisão e às razões que a fundamentam (direito à informação).

Assim, o direito à informação ambiental tem uma dimensão de participação política, uma vez que o ambiente é considerado de todos e, como tal, defensável por todos. A participação política traduz o desejo e o direito de se ser informado sobre as intervenções públicas e privadas que interfiram directamente no ambiente.
Afastando já a discussão sobre o artigo 10º da Convenção acerca do direito à informação, no direito português está em causa a protecção da informação aos cidadãos num contexto de participação politica de defesa do ambiente, ou seja, a informação é essencial para “iluminar” o caminho dos cidadãos, quer estejam numa posição de participação democrática, quer sejam meros espectadores ou lesados por actividades perturbadoras do ambiente (como o caso do acórdão em análise supra).
Assim, a lei nº19/2006, no seu artigo 2º elenca a lista de objectivos:
a) “Garantir o direito de acesso à informação sobre ambiente detidas pelas autoridades públicas ou em seu nome;
b) Assegurar que a informação sobre ambiente é divulgada e disponibilizada ao público;
c) Promover o acesso à informação através da utilização de tecnologias telemáticas ou electrónicas”.
Efectivamente, está garantido não só o acesso à informação pelos cidadãos, como também a publicitação dessa informação ao público, ainda que este não a procure. Ou seja, ao contrário do que se verificou no acórdão, em Portugal, mediante este diploma, assegura-se ao cidadão o acesso directo a todo o tipo de informação, como também se garante a sua publicitação.
A noção de “informação sobre ambiente”, podendo cair no problema dos conceitos indeterminados, foi definida no artigo 3º/b da LAIA onde se refere informação relativa aos estados dos elementos do ambiente, a factores que possam afectar esses elementos do ambiente, a medidas políticas, etc. Embora o elenco seja amplo, não me parece que seja exaustivo, daí ter de se entender a norma a título exemplificativo.
Também a Directiva Seveso II, transposta em Portugal, define métodos de protecção do acesso à informação pelos cidadãos, nomeadamente através da notificação feita pelas autoridades competentes, onde se identifica o operador e responsável pelo estabelecimento, como a identificação das substâncias perigosas, a actividade exercida, os quantitativos máximos passíveis de se encontrarem presentes na instalação (em massa) e forma física e descrição da área circundante do estabelecimento (artigo 11º do DL 164/2001). Também no artigo 16º se prevê um relatório de segurança, que terá de ser revisto numa periodicidade de, pelo menos, 5 anos.

Assim, e não entrando numa análise detalhada do procedimento de disponibilização de informação nos vários diplomas, a ideia a reter é a de que, na legislação portuguesa, existem mecanismos eficazes de protecção do direito à informação ambiental dos cidadãos, quer sejam estes activamente participativos na comunidade, quer sejam lesados nos seus direitos fundamentais por práticas abusivas e lesivas do ambiente e se queiram defender. Em regra a informação é do domínio público e de livre acesso pelos cidadãos, excepto nos casos em que a informação, por motivos de confidencialidade ou segurança, possam ser recusadas. Nesses casos de recusa, o direito à informação também pressupõe um direito a resposta sobre o pedido de disponibilização da informação (9º LAIA). Deste modo, a resposta pode ser positiva ou negativa (ver artigos 11º/2 e 5 e 12ºda LAIA). No entanto, o artigo 11º/6 da LAIA permite o indeferimento do pedido de disponibilização da informação em determinadas situações, previstas no artigo e que, a meu ver, devem ser entendidas como taxativas, uma vez que se tratam de restrições ao direito de informação dos cidadãos. Preocupantes também me parecem os nºs 7, 8 do artigo 11º que permitem a flexibilização dos fundamentos de recusa de acesso à informação. Preocupantes porque, em matérias de direitos dos cidadãos, todas as restrições devem ser elencadas taxativamente e de forma clara, sem possibilidade de mecanismos discricionários de “fuga” ao dever de disponibilização da informação. Também o artigo 12º LAIA consagra um terceiro critério de flexibilização dos fundamentos de recusa, consagrando o princípio da preferência da disponibilização parcial sobre a não disponibilização, sempre que a destrinça entre dados acessíveis e não acessíveis seja facticamente possível.

Ainda, qualquer consulta de informação é gratuita (art. 16º/1 LAIA), ao contrário do suporte da informação que pode ser taxada.
No caso de o requerente se defrontar com uma resposta negativa quanto ao seu pedido de disponibilização de informação, pode reagir intra-administrativamente, apresentando queixa à Comissão de Acesso a Documentos Administrativos (CADA), nos termos do art. 16º da LADA. Embora não vá aprofundar esta questão no trabalho cabe referir que o meio processual mais adequado e eficaz para fazer a estas situações é a intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões, regulada nos artigos 104º e seguintes do CPTA. Trata-se de um processo célere e sumário.

Em suma, quer a LAIA, como os diplomas enunciados baseados na Directiva Seveso II elencam mecanismos de protecção do direito à informação e garantem que essa informação será disponibilizada aos cidadãos, especialmente quando esteja em causa actividades que possam ser lesivas para a sua saúde, bem estar e qualidade de vida.



Mariana Pinto Ramos - subturma 3

Sem comentários:

Enviar um comentário