segunda-feira, 26 de abril de 2010

Princípio da Precaução - visão jurisprudencial

Observatório da realidade: O Princípio da Precaução no Acórdão STA 0438/09 de 02-12-2009 acerca da INCINERAÇÃO E CO-INCINERAÇÃO DE RESÍDUOS PERIGOSOS.


"VI. QUESTÃO DO PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO

O acórdão recorrido escreve:
“Ora, no caso sub judice, resulta do mini-teste de queima de RIP realizado no teste 2 da cimenteira de Souselas de 16 a 27/7/01 junto aos autos e à matéria de facto, que “não há emissões acrescidas de dioxinas/furanos pela combustão de RIP até ao máximo permitido para a percentagem de substituição de combustível normal ...”
Por outro lado são feitos uma série de alertas quanto a testes futuros que deverão ser em melhores condições.
Este mini-teste é feito pela CCI na sequência do parecer de Maio de 2000 que conclui que a “emissão de dioxinas/furanos devida à queima de RIP em co-incineração por cimenteiras em Portugal não tem relevância ambiental a nível local regional ou global”.

Contudo, o parecer do grupo de trabalho médico junto de fls 460 a 470 dos autos conclui que: “A evidência científica disponível quanto à co-incineração aponta no sentido de que a substituição de uma parte combustível convencional por resíduos não se traduzirá num acréscimo de emissões nocivas Nestas condições a co-incineração não contribuirá para uma exposição acrescida de substâncias prejudiciais à saúde nem através de emissões para a atmosfera nem através do cimento produzido.

No entanto dever-se-á acautelar a eventualidade de riscos acrescidos a nível das localizações nas quais o processo de tratamento de resíduos em co-incineração possa vir a ocorrer através da prévia caracterização detalhada das condições ambientais de cada local em causa e das posteriores monotorização ambiental e vigilância epidemiológica. Devem por isso esses procedimentos ser assegurados em conjugação com os propostos no relatório diz CC tendentes a garantir a segurança das populações
Em conclusão, para efeito do disposto no n°4 do artigo 5º da Lei 22/2000 de 10 de Agosto, e uma vez asseguradas as condições anteriormente enunciadas...”( A frase continua com o seguinte teor: “ ... entende-se, tendo em atenção o estado actual dos conhecimentos e os resultados de estudos realizados noutros países em situações similares, dar parecer positivo ao desenvolvimento das operações de co-incineração de resíduos industriais” - cfr. ponto A. da matéria de facto.).

Um dos médicos deste grupo, o Dr. …, em voto de vencido diz:
“No caso de não haver tratamento ou destino alternativo para alguns resíduos a eliminação dos mesmos deverá ocorrer em condições apropriadas quer sob o ponto de vista técnico (incineradora dedicada) e geográfica, de modo a não causar riscos acrescidos para as comunidades envolventes
Apesar da controvérsia, há suspeitas de perigosidade no tocante a co-incineração. As conclusões estão elaboradas de forma a permitir a aceitação da co-incineração de resíduos industriais perigosos
Face às dúvidas de natureza científica informo que não subscrevo o relatório do grupo médico”.

Por outro lado os recorrentes vêm invocar neste processo cautelar as condições geográficas específicas de Souselas, já que a cimenteira está em cima da população de Souselas e a 4,5 Km de Coimbra.
Para tanto invocam nos artigos 40 a 44 da petição, entre outros, factos no sentido da existência de um risco de concentração de poluentes susceptíveis e aumentar o risco de contrair certas doenças por parte de quem vive nas proximidades de uma cimenteira em co-incineração de resíduos industriais perigosos, nomeadamente face à situação crítica, desde logo, da cidade de Coimbra.
Como supra referimos, a necessidade de concretização da situação geográfica concreta já vem alertada no referido relatório médico junto à matéria de facto.
Por outro lado, no art. 112° da petição vem invocado que a fábrica da C… não está dotada de mecanismos de monotorização capazes de aferir da qualidade do ar envolvente da região e ainda que nada foi feito sobre a prévia caracterização detalhada das condições ambientais apontadas pelo Grupo de Trabalho Médico (arts 77, 78, 80 e 81 da petição).

Ora, não obstante se possa e deva entender que está em causa matéria de cariz essencialmente técnico e por isso sujeita a prova pericial, entendemos que a dúvida existente sobre os riscos aqui em causa tal como foram definidos na causa de pedir justifica que se valorize esta dúvida de forma a julgar verificado o requisito do periculum in mora, por estarem em causa prejuízos plausíveis de difícil reparação.
Assim, a mera prolação do despacho ora posto em crise tem a virtualidade de ser susceptível de implicar a produção de danos para o ambiente ou para a saúde pública, no caso concreto das localidades aqui em causa.

Para além de que a imediata execução dos acto suspendendos com a extensão de todos os efeitos potenciais e legais decorrentes da não suspensão da pretensão cautelar é susceptível de gerar uma situação de periculum in mora na vertente da constituição duma situação de facto consumado.

Na verdade, e quanto à situação de facto consumado, cotejando todo o regime legal decorrente dos diplomas em referência nos autos, em particular da conjugação do regime decorrente do DL n.° 85/05, de 28/04, do DL n.° 69/2000 e suas sucessivas alterações nomeadamente a do DL n.° 197/05, de 08/11, do DL n.° 194/00, de 21/08 (com alterações igualmente) o não deferimento da pretensão cautelar permitirá que, prosseguindo a exploração da unidade industrial em crise com os inerentes actos materiais de co-incineração, caso se vier a obter procedência na acção principal na qual se discutirá a legalidade do acto suspendendo, a reintegração daquela decisão não se conseguirá obter na sua integralidade, frustrando-se a tutela jurisdicional principal e sua utilidade que se visava obter com a dedução da presente providência cautelar.

É certo que a procedência da aludida acção principal irá implicar, face à sua execução integral, a nulidade dos actos consequentes, eliminando-se o acto de licenciamento de exploração, mas o que não se conseguirá reconstituir e se torna impossível evitar, frustrando-se, desta forma, o efeito útil da tutela a obter a título principal e da satisfação dos eventuais interesses e direitos que estejam na base quer daquela pretensão, são os actos materiais de co-incineração que não poderão ser eliminados por efeito da prolação da sentença na acção principal e em execução/reconstituição da situação fáctico-jurídica, sem a emissão do acto ilegal.
A plena execução e eficácia dos actos suspendendos irá permitir assim a constituição duma nova realidade material que tomará impossível a reintegração no plano dos factos da situação preexistente à emissão do despacho aqui em causa, obtida a procedência da pretensão formulada pelo aqui recorrido na acção principal.

Existe, pois, um risco fundado de constituição de uma situação de facto consumado por haver fundado receio de que se a providência for recusada se tornará impossível a reintegração no plano dos factos da situação conforme à legalidade uma vez decidido o processo principal com decisão favorável à pretensão do requerente cautelar.

Nessa medida, terá de ter-se como preenchido, com esta fundamentação, o requisito do periculum in mora na vertente da constituição duma situação de facto consumado, não se acompanhando nesse ponto o juízo efectuado na decisão judicial em apreciação que, desta forma, não pode manter-se.”

Da alegação dos aqui recorrentes resulta como questão central por ambos colocada o facto do TCA no acórdão recorrido, ao socorrer-se do designado princípio da precaução afastando por essa via o ónus de alegação e prova dos requerentes da providência dos factos integradores do periculum in mora, ter feito incorrecta interpretação e aplicação dos art°s 174, do Tratado CE, do art.° 62, n.°2, al. a), da CRP, do art.° 3, al. a), da Lei de Bases do Ambiente, e do art.° 120, n.° 1, al. b), 114, n.° 3, al. g), e 118, n.°s 2 e 4, todos Código de Processo dos Tribunais Administrativos.

Vejamos.
Na Declaração de princípios saída da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro de 1992, foi adoptado o denominado princípio da precaução, assim redigido no item 15 do texto:
“De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão sara postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”.


Aceitando a ideia de precaução como princípio jurídico, o que não é pacífico na doutrina – o qual não tem consagração na nossa Lei Constitucional nem no Tratado da União Europeia – a sua aplicação aos procedimentos cautelares não pode ter a extensão que o acórdão recorrido lhe dá.
Tal entendimento levaria, como sustentam os recorrentes, a que bastaria uma mera alegação genérica de que a ciência não garante que não há qualquer efeito danoso para o ambiente ou saúde, existindo, assim, sempre um risco potencial, para que qualquer decisão administrativa fosse paralisada, implicando, assim, que, perante a dúvida sobre a causa de um dano ou sobre a sua possível ocorrência, o julgador devia decidir sempre contra o autor do acto administrativo alegadamente causador de tal hipotético e eventual dano.

Como escreve Carla Amado Gomes, por sinal, na anotação referida no acórdão recorrido (Cadernos de Justiça Administrativa, n.° 63, pág. 55 a 59), traduzir-se-ia na introdução de um critério material na ponderação dos interesses em jogo que “desequilibra totalmente o balancing process previsto no n.° 2, do art. 120, do CPTA”.

Não tendo, tal princípio, consagração expressa na Lei portuguesa, designadamente na CRP - que, no artigo 66, n.° 2, prescreve que, genericamente, incumbe ao Estado “prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão” –, nem no Tratado da União Europeia, - que no seu art. 174.º define princípios gerais de preservação e protecção ambiental – não há suporte legal para o afirmar como princípio jurídico vigente na nossa ordem jurídica, devendo antes ser entendido como mera orientação política dos Estados, que o devem ter em conta nas suas opções políticas e legislativas.

Daí que aquele invocado princípio não tenha a potencialidade, nem de se sobrepor ao critério jurídico do CPTA no que respeita à verificação dos requisitos do deferimento das providências cautelares, maxime do art.° 120, n.° 1, al. b), nem de inverter a regra do ónus da prova consignada no art. 342.° do Código Civil.

À face do nosso ordenamento jurídico, o princípio da precaução não foi adoptado como critério de decisão da prova, não podendo com base na mera falta de certeza da não produção de danos ambientais ou para a saúde pública o julgador concluir pela existência de receio de produção de danos ambientais e para a saúde pública, de difícil reparação ou irreversíveis, quando não se demonstra positivamente, mesmo de forma sumária, a existência de uma probabilidade séria de eles virem a ocorrer.
Trata-se de uma opção legislativa discutível, em termos de política legislativa, mas que se justificará pela ponderação da necessidade de prossecução de outros interesses públicos, que se entendeu não dever ser obstaculizada por meros receios de danos eventuais ou hipotéticos, que não se demonstra com grau de probabilidade séria que possam vir a ocorrer.

Assim sendo, o acórdão recorrido ao resolver a dúvida que diz existir sobre os riscos para a saúde pública e ambiente da queima de resíduos perigosos em Souselas no sentido da sua efectiva verificação viola aquela regra do ónus da prova."

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